Cachaça: O primeiro destilado das Américas

Ruínas do Engenho do Governador, renomeado São Jorge dos Erasmos.

A cachaça é um destilado genuinamente brasileiro e o primeiro produto da colônia a rivalizar em nível de igualdade com seus similares na Europa. É assim, desde cedo, um produto com a cara do Brasil, audaciosa, vibrante e muitas vezes indevidamente reconhecida. Adquiriu ao longo de sua história nuances angelicais e profanas, dicotomia promovida na música, nas letras e em manifestações culturais de origem popular.

Moeda de troca; infusão medicinal; insumo religioso; ferramenta de protesto político da colônia; alvo de ciúme, taxação e proibição por parte da metrópole; produto de exportação e enredo de escola de samba.

É sem dúvida a grande Musa dos bons compositores populares e inspirou algumas de suas grandes realizações, destacadamente na música sertaneja e no samba. Desde o início do século XVI quando foi destilada pela primeira vez até os dias de hoje conserva o frescor e a jovialidade de uma menina moça e vive hoje o começo de seus melhores dias, quando chega aos mais exigentes cantos do mundo levando a alegria e a irreverência de uma bela passista em plena avenida, num dia de carnaval.

Essa história começou oficialmente em 1532 com a chegada da Armada de Martim Afonso de Sousa, com seus dois sócios e uma autorização real para governar a Capitania de São Vicente e implementar seu plano de negócios, que incluía um Engenho para produção de açúcar, derivados e aguardente.

Sabe-se que antes disso já haviam pequenos engenhos em alguns pontos da colônia, mas não eram oficializados e autorizados pela metrópole portuguesa (o que equivaleria ao MAPA e à Receita Federal nos dias de hoje), eram portanto “clandestinos” e talvez por isso não foram oficializados na história.

Engenho São Jorge dos Erasmos, em São Vicente-SP, contruído em 1534, consideradas ruínas mais antigas do Brasil.

Este Engenho do Governador foi o primeiro modelo com um sistema de moagem movido à roda d’água, está localizado na atual cidade de São Vicente e suas ruinas são consideradas pelos arqueólogos como as mais antigas do Brasil.

Ali se produzia, além do “aguardente da terra” feito da fermentação do caldo (o nome cachaça apareceu tempos depois), outro aguardente feito a partir do melaço que é obtido da fervura do caldo (este mesmo aguardente produzido posteriormente nas Antilhas, ganharia o nome de Rum, provavelmente por conta do nome latim da cana-de-açúcar – Saccharum Oficinarum).

Relatos de corsários que atracaram e assaltaram São Vicente em 1591, chefiados pelo temido Thomas Cavendish (terceiro capitão a circunnavegar o planeta) dão conta de que nossa bebida ainda no final do século XVI era conhecida apenas como “aguardente da terra”.

O nome cachaça, como relata Luís da Câmara Cascudo em seu Prelúdio da Cachaça (editora Global), acontece com o poeta português Francisco de Sá Miranda em 1521 após uma visita de um seu amigo e comensal, ele escreve uma quadra onde diz:

Ali não mordia a graça, | Eram iguais os juízes; | Não vinha nada da praça, | Ali, da vossa cachaça! | Ali, das vossas perdizes!

Mas voltando à nossa história…

De São Vicente e outros pontos do litoral (destacadamente Paraty no estado do Rio de Janeiro), nossa aguardente migrou para o planalto e sertão afora encontrando no Campo dos Cataguazes (atual Minas Gerais), o ponto alto de sua valorização e desenvolvimento. Assim, nosso aguardente tornou-se famigerado no Brasil e também no exterior, sendo vendido a comerciantes portugueses para fins de exportação e aos navegadores estrangeiros que atracavam em nossos portos.

Nesses tempos nosso aguardente foi ganhando alguns de seus apelidos, sabemos que caninha é um dos mais antigos, na Bahia jeribita e no interior de São Paulo era conhecida como pinga. Os portugueses reinóis é que a chamavam cachaça de forma pejorativa, pois para eles ela era uma bebida de Quinta (rústica) semelhante ao aguardente espanhol e diferente de seu exemplar, a bagaceira que era produzida em vinícolas tradicionais e melhor equipadas.

Borras de cachaza expurgadas no processo da fermentação caipira, como nos velhos tempos do Brasil Colônia.

Para justificar essa rusticidade, deve-se lembrar que cachaza é como os espanhóis chamavam as borras do caldo que fermentavam nos cochos e eram servidos aos animais. Chamar a aguardente de cachaza era, talvez, uma rebeldia linguística.

A Cachaça tem sua trajetória inteiramente entrelaçada ao desenvolvimento e emancipação do Brasil, cabe em muitos textos, mas vamos tentar apontar por aqui em diferentes artigos, alguns desses fatos que contribuíram na formação do Brasil e de seu povo.

No baile da Corte, disse o Conde D’eu (marido da Princesa Isabel) à Dona Benvinda: Farinha de Suruí | Pinga de Paraty | Fumo de Baependi | É comê, bebê, pitá e caí!(Oswald de Andrade)

Abraços!

haroldo.narciso@gmail.com

Alguém que cresceu visitando engenho para moer cana, tomar garapa e aprender a arte dos Velhos Mestres de Alambique.

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